sábado, 23 de janeiro de 2010

SAUDADE DO PARQUE AMORIM COM FEIRA E COM PEIXE-BOI *



A madrugada de ontem ainda ia a meio quando acordei, e perdi o sono. Comecei, então, relembrando o tempo em que a atual "Praça do Parque Amorim," na cidade do Recife, era um grande  parque, com árvores, muita sombra e tudo aquilo a que um parque tinha (e tem) direito, inclusive um lago com peixe-boi e uma prosaica feira semanal, que ocorria, se não me engano, às quartas-feiras (por favor, não me peçam agora para discorrer sobre papa-figos, porque não o farei. Mais adiante, narrarei a minha experiência...).
 
Quando eu era criança, o que restava do parque Amorim já não tinha muito a ver com o que ele havia sido nas três primeiras décadas do século passado. Embora eu não o tivesse conhecido em sua época áurea, sabia da sua beleza, contada por meus pais. No início da década de 1950, o peixe-boi ainda estava lá, disso eu lembro bem, grande, tranquilo, sempre faminto e sem se importar muito com os olhares das pessoas que insistiam em jogar no lago alimentos que só faziam mal ao pobre mamífero. Na realidade, era mais um tanque sujo do que um lago digno de um peixe-boi. Lembro ainda da brisa fresca que vinha da distante Olinda e das amplas sombras  existentes no parque, devido às frondosas  copas das árvores, que não sei mais quais eram. 

De inicio, íamos à feira pela manhã, bem cedinho. Eu seguia feliz, sempre de mãos dadas com a  minha mãe, ao lado de Maria, o nosso "Anjo da Guarda". Antes mesmo de chegarmos ao Parque Amorim já se contratava  um carregador que, com um enorme balaio à cabeça, passava a ser a nossa "sombra", até estarmos de novo em casa.  Como eu gostava do odor das frutas frescas, do cheiro acre das especiarias e da textura do fumo  de rolo! Sempre comprávamos fumo para oferecer à lavadeira, de nome também Maria, filha de escravos, gorda, austera e que eu acreditava estar perto dos cem anos. 
 
Passado algum tempo, não sei por qual razão, começamos a fazer a feira à noite e  íamos no carro do meu pai. Eu não gostava tanto dessas idas que, além de terem tirado o prazer do passeio a pé, me amedrontavam mais do que quando íamos durante a manhã. A essa altura, eu já sabia das assustadoras histórias do Parque Amorim.


No século XIX, havia naquele local um palacete neoclássico localizado, isolado e misterioso, dentro do enorme Sítio da Cruz, pertencente à família Amorim. No século seguinte, tudo se desfez e o sítio tornou-se um parque público, o Parque Amorim, nome derivado daquele da família que ali vivera. Rezava a lenda que qualquer criancinha que saltasse o muro do Sítio da Cruz serviria de banquete a um morador do palacete que, sabe-se lá porquê, não resistia a um fígado bem tenrinho. Rezava também a lenda que esse morador, mesmo depois de não mais existirem a casa e o sítio, continuava, em noites de lua cheia,  a perambular pelo Parque Amorim (chegamos à história do papa-figo, que até hoje ainda consegue me arrepiar).


Uma noite, enquanto os meus pais faziam a feira, parei para olhar o peixe-boi e esqueci deles e do tempo. De repente, sinto alguém muito perto de mim. Olhei para o lado e vi um homem vestido com uma casaca preta desbotada e com manchas avermelhadas, que pareciam ser respingo de um dos bolsos. O seu rosto era muito pálido,  tinha grandes orelhas e olhos sem brilho. Senti um frio no pescoço. Era ele que o tocava suavemente. Quando o homem já estava prestes a me agarrar com dedos ossudos e unhas descomunais, soltei a voz e gritei, gritei  muito, gritei tão alto que acordei... Constatei, então, a preocupação de meus pais querendo saber o que se passava no banco traseiro do nosso Ford 39 e porque eu acordara gritando daquele jeito. Que alívio! Estávamos quase em casa, sem nenhum sinal de papa-figo, de lobisomem, ou de sei lá o quê.   Se ele alguma vez ele existira, tinha sido no meu sonho e tinha ficado para sempre no Parque Amorim.

De repente, na madrugada passada, eu senti uma vontade enorme de voltar ao Parque Amorim, não à praça de hoje em dia, mas àquele parque do peixe-boi e da feira. Que vontade de poder sentir de novo a suave mão gelada do papa-figo segurando  ternamente o meu pescoço! Infelizmente, nos tempos que correm, se eu voltar à noite ao Parque Amorim, mesmo com  a fonte luminosa que nele foi instalada, a única sensação gelada que poderei sentir no pescoço será o frio da arma de um assaltante, ameaçando-me com rispidez,  sem casaca preta, sem suavidade e sem o charme dos papa-figos, vampiros da minha infância.

Que pena! Sem dúvida que eu preferia que por lá ainda circulassem papa-figos, lobisomens, vampiros ou outras assombrações!
 
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* As fotos postadas nesta crônica estavam disponíveis na Internet, mas foram retiradas inexplicadamente.

sábado, 16 de janeiro de 2010

CE FUT AU TEMPS OÙ MIHAIL CHANTA



"Est-ce que tu te souviens, Mihail, du temps où tu chantas?
Moi, si, je m'en souviens!
Tu fus un petit enfant au temps où tu chantas,
Mais tu fus heureux, malgré tout ton malheur!
Tu te crus le rossignol de l'Est,
Quand tu ne fus que le rossignol du Delta.



Est-ce que tu te souviens quand, à la fin de la journée,
Ta maman  t'appela: Jonut, Jonut?
Tu te sentis donc tranquille là-bas,
Parce qu'à part d'être Mihail, le rossignol danubien,
Tu fus aussi le petit Jonut de ta maman!
Ah, qu'il fut beau le temps où tu chantas dans un roumain d'enfant!


À Braila tu fus né mais le Delta fut ton berceau!
Berceau ingrat qui n'a pas sut faire de son petit rossignol
Le grand aigle de l'avenir!
Pourquoi tu ne chante plus, petit Jonut,
car nous savons que les aigles peuvent  aussi chanter?
Qu'a tu donc fait de ton chant, de ton sourire?


Le temps et les eaux du Danube passent vite, tu le sais,
Au moins, tu t'en dois croire!
Alors, malgré toutes les ingratitudes te ta vie adulte,
Je t'ordonne, cher rossignol,
De ne pas oublier les chansons que tu portes au coeur,
Chansons d'enfance, chansons roumaines, chansons d'espoir.



Chante donc Mihail, chante Jonut!
Chante Mihail Jonut Dilbea,
Chante ami lointain,
Chante pour ne pas oublier - toi et moi -
Que le petit rossignol du Delta
Saurait aussi chanter les chansons des aigles."

Auguste Tièle

Auguste Tièle é um poeta desconhecido, que encontrei ao acaso nos alfarrábios do já citado pasquim chamado "Memória". Tièle desconhece regras e métricas, mas  me encantou com os seus versos, em um francês também bizarro, no qual canta as dores do seu coração. Não sei se o pretenso poeta é francês (duvido), romeno ou mesmo brasileiro. Esta última hipótese baseia-se no fato de que os seus poemas publicavam-se no "Memória", na cidade do Recife, na década de 1930, sob as custas da Editora "Imaginação".