* Hoje, dia 29 de junho de 1958, mesmo sendo domingo e estando de férias, acordei mais cedo do que o habitual, porque, além de ter de ir à Missa das 8:00h, na Capelinha dos Aflitos, acompanhando mamãe e minha irmã, dois grandes eventos iriam ocorrer. O primeiro, era a transmissão, às 10:00h, da final da Copa do Mundo de futebol, diretamente da capital da Suécia. A Copa do Mundo deste ano serviu, ao menos, para eu memorizar, e nunca mais esquecer, que a capital da Suécia é Estocolmo e que o rei de lá se chama Gustavo Adolfo.
Meu pai e meu irmão, bem cedo, prepararam as cadeiras em torno do potente rádio Phillips, que temos no terraço dos fundos. Antes das 7 horas, os dois trouxeram o rádio da sala, ligaram a antena para melhorar a qualidade da recepção, confirmaram que estava excelente, e penduraram uma bandeira do Brasil na parede atrás do rádio.
O segundo evento era a quadrilha que iria dançar esta tarde, na matinê da festa de São Pedro, do Clube Português do Recife. A minha estreia na quadrilha foi na terça-feira passada, na matinê de São João, tendo como par uma menina aqui da Rua do Cupim, chamada Margarida, que faz o meu coração palpitar aceleradamente quando seguro a sua mão para dançarmos o comando do “alavantu” (o meu professor de francês disse que o correto é “en avant tous”). Sem dúvida, segurar a mão de Guida, em qualquer momento da quadrilha, é mais importante para mim do que a decisão do campeonato de futebol, mas, mesmo assim, estava, também, ansioso para escutar o jogo.
Depois de sair da cama e de, rapidamente, fazer o asseio matinal, corri para o quintal, onde o meu pai, entretido, colhia os frutos maduros de um único cafeeiro que ele plantou e que, este ano, floresceu e manteve uma quantidade suficientemente boa de frutos para preparar, depois de secos, ao menos um bule de saboroso café. - “Saia do quintal, menino, para não sujar a roupa antes da Missa”, gritou mamãe da porta da cozinha, quase ao mesmo tempo em que papai, num tom bem mais baixo, dizia -“Não ligue para o que a sua mãe está dizendo e segure a escada, enquanto eu subo para tirar os frutos que estão nos galhos de cima”. Com tantos comandos desencontrados, como saber a qual (ou a quem) obedecer? Seja como for, depois que o meu pai desceu da escada, entrei em casa e já me preparava para comer um pedaço de canjica, que Maria havia feito na véspera, quando ela me repreendeu -“Tire a mão daí, que você não pode comer nada antes da Missa, porque sua mãe me disse que iam todos comungar”. Não é que eu havia esquecido!

Voltamos da Missa e, mal acabei de tomar café, o jogo começou. Que tragédia, eu ainda estava comendo a canjica que não me tinham deixado comer mais cedo e a Suécia fez o primeiro gol! Papai disse que o gol foi de um tal de Liedholm, quatro minutos depois de o jogo começar e que Gilmar não teve como defender. Meu irmão, como de costume, chamou dois ou três palavrões e levou um tremendo puxão de orelha de mamãe, mandando que ele fosse lavar a boca. A minha irmã estava radiante com o puxão de orelha que ele acabara de levar e nem ligou para o gol sueco, vaticinando que iria se repetir o mesmo da Copa de 1950. Chegou até a dizer que a culpa de tudo era do uniforme azul, em lugar do tradicional amarelo, que a nossa seleção estava hoje usando -“Não adiantou de nada Feola dizer que azul é a cor do manto de Nª Srª Aparecida, porque santo não faz milagre em jogo de futebol”, continuou ela dizendo, sendo, de pronto, repreendida por nossa mãe com um solene - “Cale já essa boca"!
Nesse meio tempo, saí de fininho do terraço e fui ver se Maria e dona Maria já tinham acabado de fazer o pé de moleque, que estavam preparando desde cedo, para que eu pudesse raspar a forma. Enquanto eu degustava, nos dedos, o último bocado da massa do bolo, dona Maria me chamou e disse - “Se importe não, meu fio, que o Brasil vai ganhar; basta ocê prometê que vai jogar três batatas para o Céu, pra dar de comê pros santos”. - Não entendi bem a promessa, mas prometi.
O 1º tempo ainda não tinha acabado e o pernambucano Vavá, natural do Recife, da Vila dos Bancários, aqui bem pertinho, já tinha metido dois gols. Goool! Gool de novo, era o que se ouvia por todos os lados. No intervalo, corri para o quintal e perguntei a dona Maria se já podia jogar as batatas para o céu, ela disse que não, que eu tinha de esperar o apito final, mas, por garantia, teria de aumentar a promessa de três batatas, para cinco. Prometi de novo, entendendo menos ainda, principalmente porque as batatas iriam ficar todas molhadas, com a chuva que estava caindo. Começou o 2º tempo, outro gol brasileiro, - "De um menino de apenas 17 anos", dizia papai cheio de orgulho, - "Pelé é o seu nome". Mais outro, do veterano Zagalo, seguido de um gol da Suécia, que não incomodou ninguém. Que belo resultado, 4 a 2 para o Brasil. No finalzinho, quando seu Adalberto já estava soltando os foguetes, o menino, o tal de Pelé, marca o 5º gol do Brasil. Somos campeões do Mundo por 5 a 2. “A Copa do Mundo é nossa, com brasileiro, não há quem possa. Êh eta esquadrão de ouro, é bom de bola, é bom de couro".
Corri para o fundo do quintal e, na porta da garagem, dona Maria já me esperava com 5 batatas na mão, que teriam de subir para o céu e dar de comer aos santos. Joguei e nunca mais vi as batatas! Algum santo comeu!
Voltei para o terraço ainda a tempo de ouvir o locutor dizendo que aquele era um dos momentos mais bonitos e emocionantes de sua vida, o Brasil, campeão do mundo de futebol e Bellini, o capitão de nosso time, levantando bem alto a taça Jules Rimet, que agora viria para o Brasil. O radialista disse, ainda, que o gesto de Bellini, levantando a Jules Rimet acima da cabeça, foi para atender aos pedidos de alguns jornalistas brasileiros, que não conseguiam fotografar o capitão com a taça, porque os estrangeiros eram mais altos e estavam na frente. Que pena que ainda não temos televisão no Recife para ter visto esse gesto de Bellini!
Almoçamos, descansei um pouco e, às três e meia, fomos felizes para o Clube Português, dançar quadrilha e comer mais canjica. Nunca dancei tão bem e, milagre ou não, na tarde de hoje, Guida segurou mais firme a minha mão e nem olhou para Marcelo, que quase brigou comigo, achando que a culpa era minha. Será milagre de São Pedro ou do Papa Pio XII, que ainda não morreu e que, portanto, não é santo? Vá lá eu saber!
Agora, vou dormir, são nove horas da noite e amanhã quero recortar todas as fotos que vão sair nos jornais e colar tudo neste caderno de desenho, junto com esta folha de papel, que agora termino de escrever. Boa noite!
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* Cascavilhando os meus alfarrábios, encontrei o texto acima, rascunhado, com letra infantil, em um caderno de anotações desgastado pelo tempo. Quem sabe se o pasquim “Memória”, da “Editora Imaginação”, ambos várias vezes citados neste blogue, não irá se interessar pelo texto?