terça-feira, 29 de junho de 2010

O DIA DE UM MENINO QUANDO O BRASIL FOI CAMPEÃO DO MUNDO DE FUTEBOL


* Hoje, dia 29 de junho de 1958, mesmo sendo domingo e estando de férias, acordei mais cedo do que o habitual, porque, além de ter de ir à Missa das 8:00h, na Capelinha dos Aflitos, acompanhando mamãe e minha irmã, dois grandes eventos iriam ocorrer. O primeiro, era a transmissão, às 10:00h, da final da Copa do Mundo de futebol, diretamente da capital da Suécia. A Copa do Mundo deste ano serviu, ao menos, para eu memorizar, e nunca mais esquecer, que a capital da Suécia é Estocolmo e que o rei de lá se chama Gustavo Adolfo.




Meu pai e meu irmão, bem cedo, prepararam as cadeiras em torno do potente rádio Phillips, que temos no terraço dos fundos. Antes das 7 horas, os dois trouxeram o rádio da sala, ligaram a antena para melhorar a qualidade da recepção, confirmaram que estava excelente, e penduraram uma bandeira do Brasil na parede atrás do rádio.

O segundo evento era a quadrilha que iria dançar esta tarde, na matinê da festa de São Pedro, do Clube Português do Recife. A minha estreia na quadrilha foi na terça-feira passada, na matinê de São João, tendo como par uma menina aqui da Rua do Cupim, chamada Margarida, que faz o meu coração palpitar aceleradamente quando seguro a sua mão para dançarmos o comando do “alavantu” (o meu professor de francês disse que o correto é “en avant tous”). Sem dúvida, segurar a mão de Guida, em qualquer momento da quadrilha, é mais importante para mim do que a decisão do campeonato de futebol, mas, mesmo assim, estava, também, ansioso para escutar o jogo.

Depois de sair da cama e de, rapidamente, fazer o asseio matinal, corri para o quintal, onde o meu pai, entretido, colhia os frutos maduros de um único cafeeiro que ele plantou e que, este ano, floresceu e manteve uma quantidade suficientemente boa de frutos para preparar, depois de secos, ao menos um bule de saboroso café. - “Saia do quintal, menino, para não sujar a roupa antes da Missa”, gritou mamãe da porta da cozinha, quase ao mesmo tempo em que papai, num tom bem mais baixo, dizia -“Não ligue para o que a sua mãe está dizendo e segure a escada, enquanto eu subo para tirar os frutos que estão nos galhos de cima”. Com tantos comandos desencontrados, como saber a qual (ou a quem) obedecer? Seja como for, depois que o meu pai desceu da escada, entrei em casa e já me preparava para comer um pedaço de canjica, que Maria havia feito na véspera, quando ela me repreendeu -“Tire a mão daí, que você não pode comer nada antes da Missa, porque sua mãe me disse que iam todos comungar”. Não é que eu havia esquecido!

Embora a Capelinha fique muito perto aqui de casa, mamãe gosta de sair cedo, para sentar num bom lugar, longe da porta de entrada. No caminho, não se falou em Copa do Mundo, nem na quadrilha de São Pedro, pois a conversa de mamãe era só sobre o Papa Pio XII, que está bastante doente. Enquanto caminhávamos, explicou que a comunhão de hoje seria em intenção de uma rápida recuperação do Santo Padre, mas que ela não acreditava muito nisso, pois as notícias da saúde do Papa não são nada promissoras. Pensei, então, que em breve teremos mais um santo no Céu que, quem sabe, poderá fazer o milagre de Guida prestar mais atenção em mim do que em Marcelo, que é o par da filha de dona Leda. Eu soube por Marcelo que Guida está "arriada dos quatro pneus" por ele, que nem adianta eu tentar nada, mas vou tentar, nunca se sabe o que se passa no coração de uma menina de 10 anos. Ao entrar na Capelinha eu já estava decidido que, quando as férias acabarem, iria rezar três Ave Marias na igreja nova do Ginásio São Luiz, pedindo o milagre do primeiro amor, nem que seja para ele acontecer só na quadrilha do ano que vem, quando eu já estiver com 12 anos.

Voltamos da Missa e, mal acabei de tomar café, o jogo começou. Que tragédia, eu ainda estava comendo a canjica que não me tinham deixado comer mais cedo e a Suécia fez o primeiro gol! Papai disse que o gol foi de um tal de Liedholm, quatro minutos depois de o jogo começar e que Gilmar não teve como defender. Meu irmão, como de costume, chamou dois ou três palavrões e levou um tremendo puxão de orelha de mamãe, mandando que ele fosse lavar a boca. A minha irmã estava radiante com o puxão de orelha que ele acabara de levar e nem ligou para o gol sueco, vaticinando que iria se repetir o mesmo da Copa de 1950. Chegou até a dizer que a culpa de tudo era do uniforme azul, em lugar do tradicional amarelo, que a nossa seleção estava hoje usando -“Não adiantou de nada Feola dizer que azul é a cor do manto de Nª Srª Aparecida, porque santo não faz milagre em jogo de futebol”, continuou ela dizendo, sendo, de pronto, repreendida por nossa mãe com um solene - “Cale já essa boca"!

Nesse meio tempo, saí de fininho do terraço e fui ver se Maria e dona Maria já tinham acabado de fazer o pé de moleque, que estavam preparando desde cedo, para que eu pudesse raspar a forma. Enquanto eu degustava, nos dedos, o último bocado da massa do bolo, dona Maria me chamou e disse  - “Se importe não, meu fio, que o Brasil vai ganhar; basta ocê prometê que vai jogar três batatas para o Céu, pra dar de comê pros santos”. - Não entendi bem a promessa, mas prometi.

O 1º tempo ainda não tinha acabado e o pernambucano Vavá, natural do Recife, da Vila dos Bancários, aqui bem pertinho, já tinha metido dois gols. Goool! Gool de novo, era o que se ouvia por todos os lados. No intervalo, corri para o quintal e perguntei a dona Maria se já podia jogar as batatas para o céu, ela disse que não, que eu tinha de esperar o apito final, mas, por garantia, teria de aumentar a promessa de três batatas, para cinco. Prometi de novo, entendendo menos ainda, principalmente porque as batatas iriam ficar todas molhadas, com a chuva que estava caindo. Começou o 2º tempo, outro gol brasileiro, - "De um menino de apenas 17 anos", dizia papai cheio de orgulho, - "Pelé é o seu nome". Mais outro, do veterano Zagalo, seguido de um gol da Suécia, que não incomodou ninguém. Que belo resultado, 4 a 2 para o Brasil. No finalzinho, quando seu Adalberto já estava soltando os foguetes, o menino, o tal de Pelé, marca o 5º gol do Brasil. Somos campeões do Mundo por 5 a 2. “A Copa do Mundo é nossa, com brasileiro, não há quem possa. Êh eta esquadrão de ouro, é bom de bola, é bom de couro".




Corri para o fundo do quintal e, na porta da garagem, dona Maria já me esperava com 5 batatas na mão, que teriam de subir para o céu e dar de comer aos santos. Joguei e nunca mais vi as batatas! Algum santo comeu!


Voltei para o terraço ainda a tempo de ouvir o locutor dizendo que aquele era um dos momentos mais bonitos e emocionantes de sua vida, o Brasil, campeão do mundo de futebol e Bellini, o capitão de nosso time, levantando bem alto a taça Jules Rimet, que agora viria para o Brasil. O radialista disse, ainda, que o gesto de Bellini, levantando a Jules Rimet acima da cabeça, foi para atender aos pedidos de alguns jornalistas brasileiros, que não conseguiam fotografar o capitão com a taça, porque os estrangeiros eram mais altos e estavam na frente. Que pena que ainda não temos televisão no Recife para ter visto esse gesto de Bellini! 

Almoçamos, descansei um pouco e, às três e meia, fomos felizes para o Clube Português, dançar quadrilha e comer mais canjica. Nunca dancei tão bem e, milagre ou não, na tarde de hoje, Guida segurou mais firme a minha mão e nem olhou para Marcelo, que quase brigou comigo, achando que a culpa era minha. Será milagre de São Pedro ou do Papa Pio XII, que ainda não morreu e que, portanto, não é santo? Vá lá eu saber!

Agora, vou dormir, são nove horas da noite e amanhã quero recortar todas as fotos que vão sair nos jornais e colar tudo neste caderno de desenho, junto com esta folha de papel, que agora termino de escrever. Boa noite!
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* Cascavilhando os meus alfarrábios, encontrei o texto acima, rascunhado, com letra infantil, em um caderno de anotações desgastado pelo tempo. Quem sabe se o pasquim “Memória”, da “Editora Imaginação”, ambos várias vezes citados neste blogue, não irá se interessar pelo texto?

sábado, 19 de junho de 2010

A FOGUEIRA TÁ QUEIMANDO EM HOMENAGEM A SÃO JOÃO

 












 A última prova escrita do primeiro semestre de 1957 havia terminado e, provavelmente, eu fizera uma bom teste, porque ainda hoje recordo a euforia com que saí do Ginásio São Luiz e vim para casa, numa época de poucos perigos nas ruas,  de tranquilidade, de quase nenhuma violência urbana. O único cuidado que eu tinha de ter era ao atravessar a rua Amélia, porque, além dos carros em disparada, nenhum dos perigos modernos rondava a minha inocência infantil. 

A minha excitação e alegria eram visíveis. Naquele tempo, sem nenhum motivo particular, eu preferia as férias de meio do ano às férias grandes, que se estendiam do final de dezembro até o início de março. Pensando bem, acho que a preferência era porque,  em junho/julho,  a minha família não saía da Rua do Cupim e, desse modo, eu podia ficar em casa lendo um monte de gibis, ou de Cinelândias e Filmelândias. Ao fim da tarde, depois do banho, eu ia para a rua, brincar de "dono de calçada", "garrafão", "pega", "lacochia" e outros jogos tão comuns à época.


Era o dia 23 de junho e eu tinha de correr para chegar cedo em casa e separar a lenha com que iríamos fazer a fogueira. Já passava do meio-dia quando dobrei a esquina da Rua do Cupim e, correndo, entrei em casa,  - "Maria, Matilde, cadê a madeira velha que papai mandou separar para queimar de noite?" Pobre Maria, pobre Matilde, tinham de parar os seu afazeres e virem correndo para o quintal, mostrar àquele mini ditador a lenha já separada, que incluía de tudo um pouco, troncos secos de alguma árvore cortada, pernas de uma mesa ou  de uma cadeira quebradas e até os tacos inservíveis para jogar hóquei que o meu irmão, fugindo ao habitual, havia ofertado para ir ao fogo. 


- "Pronto, agora que já viu qual será a madeira que vai pr'o fogo, vá tomar banho e, depois, trate de almoçar  bem, porque lá pelas 3  horas vamos começar armando a fogueira", dizia Maria, na sua função de ama zelosa e no exercício constante da maternidade, mesmo sem ter sido mãe de filhos do seu próprio ventre. Que saudade de Maria! Obedecendo ao comando, e sob o controle de minha mãe, fui tomar banho e já estava à frente da mesa quando papai e o meu irmão chegaram para o almoço. 


O enorme pacote com os fogos que seriam queimados à noite, comprados no Bazar Caramuru, na rua da Concórdia, foi guardado cuidadosamente e eu estava proibido de chegar perto daquele incendiável embrulho. Durante o almoço, a minha irmã só falava no concurso de Miss Brasil, ocorrido na noite anterior, no Hotel Quitandinha, em Petrópolis, que dera a vitória a uma lindíssima amazonense, de origem lusitana, tal como nós, chamada Terezinha Morango. O Jornal do Commércio e o Diário de Pernambuco traziam uma foto com a nova Miss Brasil  ao lado da segunda colocada,  a candidata de Minas Gerais, onde se atestava a superioridade da beleza de Terezinha Morango. Meu pai já estava intimado a comprar a "Manchete", que deveria sair em breve com todas as fotos do concurso.


O meu irmão, por seu lado, ainda não se cansara de falar sobre a classificação do Brasil para a Copa do Mundo de 1958.  Em abril daquele ano de 1957, a nossa equipe, primeiro, com um empate, depois, com uma sensacional vitória, ambos contra o Peru, conseguira a tão almejada classificação. Ele e o papai se questionavam, então, sobre o que iria acontecer um ano mais tarde, em junho de 1958: -"Será que iremos conseguir suplantar a força alemã, campeã do mundo?" -"E a Suécia, jogando em casa, como irá se comportar?"  A minha mãe nada dizia, apenas escutava, como era o seu hábito. Eu não tinha vontade de comer e não me importava com misses ou com futebol, queria mesmo era armar a fogueira em homenagem a São João. 


De repente, a meio do almoço, ouço um grito de Matilde, - "Corra Maria, venha me ajudar a tirar a lenha do quintal porque vai começar chovendo". Minha mãe não teve tempo de dizer - "Acabe de comer, menino" - e eu já estava no quintal, ao lado de Maria, Matilde e dona Maria (filha de escravos, idosa e corpulenta, que era a lavadeira da casa ), recolhendo a madeira exposta e guardando na garagem. "Santa Clara clareai, peça a Deus que faça sol. Vai chuva vem sol" era entoado pelo quarteto, com dona Maria rezando estranhas orações, enquanto pitava o seu cachimbo. E o sol, com a ajuda de Santa Clara, voltou a brilhar na cidade do Recife, naquela véspera do dia de São João.


A tarde havia sido de trabalho intenso, mas o resultado obtido enchera a todos de orgulho. A fogueira estava pronta com as bandeirinhas colocadas em volta, os balões coloridos já estavam pendurados nos galhos da goiabeira e do frondoso sapotizeiro, e até o cágado já fora preso no quarto dos fundos, para não fugir pelo portão ou, quem sabe, derrubar a nossa fogueira. O gato angorá, de nome "Kiss," fora cuidadosamente trancado no quarto da minha irmã. "Menininho", o cachorro da família, já tentara fazer pipi na armação que sustentava a fogueira, mas dona Maria, vigilante, reprimira o  obsceno ato com uma varinha que sempre tinha à mão. Pobre Menininho, recolheu-se ao terraço e conseguiu se enfiar debaixo da mesa do rádio, para evitar varas, fogos e crianças.


A mamãe não gostava de que muitos meninos ou meninas frequentassem a nossa casa, por isso, com exceção de nossos vizinhos mais próximos, Augustinho, Cláudio, Nilza e Carminho, eram poucos os "amigos da rua" que costumavam nos visitar. A noite de São João, porém, era uma exceção e o portão grande ficava aberto até mais tarde, para que a criançada pudesse entrar, ajudar a acender a fogueira, soltar fogos e fazer adivinhações. Se não me engano, fora o meu pai quem dera essa ordem e o resto da família apenas obedecera, gostando ou não.


Às seis horas em ponto, depois de novas orações  e cantorias a Santa Clara, quando despontava a primeira estrela, a fogueira foi acesa. O quintal estava cheio e eu, feliz , ao lado, além dos já citados vizinhos, de outros amigos,  Marcelo, Célia, Hélio, Hebe, Armandinho, Bete e tantos outros, próximos e menos próximos, que, como eu, tinham o encantamento dos 10 anos. 

Papai, meu irmão, eu e alguns dos meninos éramos os responsáveis pela queima dos fogos, vulcões, tiros de bengala, bichas de rodeio, traques de massa e tantos outros que enchiam de luz e barulho o nosso quintal, assustando os morcegos e encantando a todos nós. Naquele dia, até Aguinaldo, amigo um pouco mais velho do que eu, que tinha vindo devolver umas revistas emprestadas, entrou para ajudar a acender a fogueira. Se bem me lembro, ele não era dado a esses folguedos, mas, na noite de São João, as exceções  eram por todos abertas, até mesmo por Aguinaldo!


Não sei porque, passadas mais de cinco décadas, fui lembrar hoje, em Brasília, do dia 23 de junho de 1957, da Rua do Cupim e daquela festa de São João no querido Recife. A nossa casa já não existe, mas a  nossa fogueira continua queimando e os nossos fogos continuam brilhando em homenagem a São João (ao menos, no meu pensamento e incontido desejo), só não quero que soltem fogos barulhentos, para não acordar às pessoas queridas, que estavam lá naquela noite e que agora estão, quase todas, dormindo, dormindo profundamente, como disse uma vez, o poeta Manuel Bandeira.


"Boa noite, meus senhores todos e minhas senhoras todas, também..."