sábado, 28 de novembro de 2009

QUEM LEMBRA DE LUZ MARINA?



Um dia desses, aqui mesmo em Brasília, quando eu estava sentado na minha poltrona favorita, meio dormindo, meio acordado, imagens de um tempo distante vieram-me tão vivas à memória que, até agora, não sei se sonhei ou se, de olhos abertos, recordei uma época que me foi cara. Uma lágrima furtiva que, discretamente, tive de enxugar me faz pensar que não foi sonho, mas sim a saudade que, naquela hora crepuscular, bateu no meu coração. Lembrei do tempo em que eu era criança e feliz, mesmo sem saber, porque as criança são felizes não o sabendo que são. 


Para mim, àquela época, o mundo  e a felicidade estavam resumidos à casa dos meus pais ("minha casa", porque toda criança é egoísta, também sem o saber)  e ao Recife ("minha cidade" e a de mais ninguém).  As lembranças que assomaram ao meu pensamento conseguiram transportar-me da poltrona em que estava para o  ano em que morreu um papa e escolheram outro, este, contrariamente ao predecessor, de rosto largo, olhar curioso, sorriso aberto e que, meio século depois, já ocupa os altares, como Bem-Aventurado.  

Fui transportado para o ano em que o Sport  ganhou o campeonato pernambucano de futebol, em que Hermeto Pascoal deixou o Recife e foi para o Rio de Janeiro e em que Hermilo Borba Filho fundou o Teatro Popular do Nordeste, o famoso TPN que, anos mais tarde, acolheu tantas paixões e seduções. As minhas lembranças voaram para 1958, ano do nascimento de Gil Vicente, que se tornou pintor e famoso e da inauguração do Aeroporto dos Guararapes, que passou a substituir o passeio que sempre fazíamos, aos domingos, ao cais do porto. 



Em 1958 os adolescentes  flertavam nos "Encontros de Brotos", tão ansiados por mim (só mais tarde é que os comecei frequentando) e Sônia Maria Campos foi eleita Miss Pernambuco. Nas minhas lembranças, senti na face a mesma brisa morna que nos afagava nas noites passadas no Clube Português, enquanto assistíamos à equipe de hóquei da casa  ganhar a quase todos os jogos, graças à destreza nos patins e nos tacos de Eninho, Breno, Bonga e Amílcar, este último, orgulhosamente, meu irmão.  Mas o que é que todas essas lembranças do ano de 1958 têm a ver com o título desta postagem? 

Quem lembra de Luz Marina? Será, apenas, uma cor de batom? 
Não sei se alguém lembra de Luz Marina, mas eu lembro e muito. Lembro tanto que fui transportado para o ano de 1958, quando ela, que hoje é uma sóbria e pacata senhora de 71 anos de idade, foi eleita Miss Universo. Luz  Marina Zuluaga foi selo na sua Colômbia natal, foi famosa, linda e, anos mais tarde, foi até mãe de uma misse com pouca sorte no concurso. Hoje, porém,  poucos, muito poucos, lembram desse nome, nem mesmo como cor de batom. Poucas, também, são as pessoas que recordam do ano de 1958, mais um no ciclo da vida e na contagem gregoriana. Efêmero tempo, efêmeras pessoas.


Ainda que ninguém mais lembre de Luz Marina, aposto que Adalgisa Colombo ainda lembra, e com uma pitada de mágoa, até hoje. Mas quem foi Adalgisa Colombo? Bom, assim é demais, deixemos a resposta para outra ocasião!

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

CET APRÈS-MIDI, À BRUXELLES, MALGRÉ LE BEAU TEMPS, UNE VISITE AU MUSÉE MAGRITTE S'IMPOSAIT!

Em todo os lugares por onde passo, percebe-se que alguma coisa está mudando no clima. Chove muito, onde não chovia, faz calor demasiado nos lugares de clima temperado, frio em terras quentes, e por aí vai. Em Bruxelas, não é diferente. Hoje, 19 de Novembro, está um dia lindíssimo e as folhas ainda não começaram a cair das árvores. Tempo estranho para esta época do ano e, nesta cidade com tantos parques agradáveis, um dia assim é uma tentação para belos passeios ao ar livre. Esta postagem, entretanto,  não pretende discorrer sobre ecologia, nem sobre as trágicas mudanças climatéricas, nem, também, sobre os parques de Bruxelas, mas sim sobre a agitada vida cultural da capital da Bélgica e da União Europeia. 
 
Como quase sempre, estou aqui em missão oficial, portanto, com muito trabalho, o que torna um "tormento", abrir os cadernos de cultura dos jornais locais e  deparar, por exemplo, com um concerto da mezzo-soprano Cecília Bartoli com todos os ingressos esgotados e, ainda, com inúmeros espetáculos e exibições no âmbito da Europalia China.  Museus com peças raras chinesas, apresentações da ópera de Pequim e uma infinidade de outras atividades, ligadas à milenar arte chinesa. Como ir a a um deles, ao menos, se a entrada é feita com hora marcada e com a compra ocorrida dias antes daquele da visita? É, de fato, uma tortura sem ter como dela escapar. Não deu para ir à Europalia, ao menos desta vez.
Decidi, então, que iria visitar o novo Musée Magritte Museum (com a palavra "museu" em francês e em neerlandês, como se escreve tudo em Bruxelas)*. O museu foi aberto ao público em Junho deste ano. Magritte é belga, natural da província do Hainaut, na Valônia, mas passou quase toda a sua vida em Bruxelas, onde morreu. Desde os primeiros encontros com os surrealistas belgas, passando depois ao contacto com os surrealistas franceses, a obra de Magritte revolucionou a pintura de um largo período da primeira metade do século XX.


O novo museu, situado na Place Royale, ocupa um edifício com 2.500 m2, pertencente aos "Musées royaux des Beaux-Arts de Belgique" e possui um acervo de mais de 200 obras do artista, óleos sobre tela, guaches, desenhos, esculturas, objetos pintados, partituras musicais, fotos e filmes dirigidos por René Magritte, para o deleite dos apaixonados por arte e, principalmente, pelo trabalho do mestre belga. Passei toda a tarde de hoje, e teria passado muito mais tempo, admirando os céus enevoados, as maravilhosas pombas, as figuras e os objetos resultado duma criação surrealista na sua verdadeira acepção, como só ele foi capaz de produzir.


Mas o Musée Magritte Museum não é o unico local em Bruxelas dedicado ao artista, existe outro museu, pequeno, sem grandes pretensões, com um encanto que há muitos anos me seduz. Refiro-me à casa de Magritte, na Rua Esseghem, onde podemos apreciar com com calma outras obras que ele nos deixou, expostas num dos seus últimos endereços na cidade. A não perder, igualmente.  A magia de Magritte, a sutileza dos seus quadros são um eterno deleite para quem visita Bruxelas. Difícil não gostar muito de estar aqui .
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*Todas as fotos das pinturas de Magritte estão disponíveis na Internet.


sexta-feira, 6 de novembro de 2009

DO CORDEL E DOS CORDELEIROS


Postagem nº 100 deste "Lugar do Souto".

Para celebrar
a centésima crônica (ou arremedo disso), levando em conta que o dia 19 de Novembro é o dia do cordeleiro, resolvi antecipar-me à data e discorrer sobre uma forma popular de literatura que sempre me atraiu e que está intimamente ligada à minha vivência no Recife, cidade onde nasci.

A literatura de cordel, ou apenas, o cordel, é um gênero literário popular com raízes nacionais no Nordeste brasileiro, mas que tem, em pequena
proporção, se estendido a outras regiões. As origens do cordel são incertas, muito provavelmente remontando à Idade Média provençal ou até mesmo mais distante no passado, à Antiguidade Clássica da Europa mediterrânea. O que é considerado como real é que foram os portugueses que trouxeram para Brasil o gosto por cantar em forma rimada (muitas vezes, ao desafio), narrando em tom jocoso e com forte crítica social certos fatos que tenham sido marcantes na comunidade de quem os cantava. Os panfletos eram colocados em cordeis e vendidos nas feiras, daí a propagação da expressão "literatura de cordel".

Sempre tive espírito de colecionador e, quando j
ovem, comecei adquirindo folhetos de cordel cujos títulos me chamavam a atenção. De início, mantive-os abertos e pendurados em um cordel mas, com o aumento dos livretos, transferi a coleção para algumas caixas de sapato que, ao meu ver, continuam sendo o melhor "esconderijo" para se guardar preciosidades. Na época da coleção, os que mais me interessavam eram os de aparência tosca e demonstrando simplicidade, quer nas gravuras, quer na qualidade do papel (eu tinha por hábito só adquirir os de pior qualidade), impressos tal como haviam sido escritos, com o português incorreto e descuidado. O cordel foi criado para ser cantado, não para ser lido, portanto, esqueçamos o bom vernáculo se queremos um bom cordel. Perdi a vontade de colecionar folhetos de cordel e eles foram relegados ao esquecimento.

Em Maio deste ano, quando postei uma crônica sobre o mesmo tema ("Cordel do Maquilador Milagreiro"), disse aos leitores que quando não tenho muito o que fazer procuro as preciosas caixas de sapato e tiro, ao acaso, um folheto para ler. Hoje, em um momento de preguiça literária, busquei um "folhetinho" bem antigo, quase destruído pelo tempo e, por incrível que pareça, sem identificação do autor, portanto "de autor desconhecido". A rima é da pior qualidade, a métrica não existe no poema e o nosso idioma está grafado tal qual o autor devia cantar nas feiras do interior de Pernambuco. Tentei lembrar onde e quando comprara o folheto de sugestivo título, mas não lembrei. Acho, mas não estou certo, que foi na cidade de Sertânia, na qual o meu pai tinha uma fazenda (Maxixe), que visitei nos idos da década de 1960. Seja como for, transcrevo apenas os primeiros versos, porque os demais são muito "picantes" para que sejam publicados neste blogue. As imagens que ilustram o texto não são do cordel publicado e foram retiradas da Internet.


Peço aos mestres linguistas que perdoem as absurdas incorreções gramaticais (concordância, regência, sintaxe, grafia e muito mais) do desconhecido autor, mas foi esse primitivismo que me atraiu, além, é claro, do tema da traição e do sofrimento dos personagens título. A quem tiver paciência de ler estes antigos e populares versos, peço que tentem imaginar o tema sendo cantado numa época distante nas noites mornas e de luar do sertão pernambucano.

"A triste história de Zefinha, Sevé e o bombeiro Mené *


Quando Zefinha os cinquenta festejô
Era solteira, muito falada e cheia de calô.

Nesse dia de festa, uma amiga da vida a Sevé lhe apresentô.
Sabida como ela só, ao fagueiro rapaz a Zefa logo encantô.
Sevé era puro, inocente e bonito, ademais, namoradô.
A pureza era tanta que na virgindade da
noiva ele sempre acreditô.
E com Zefinha, um mês depois, Sevé cum grande festa casô.



Mais de dez anos se passô
E
muito amô entre os dois rolô.
O puro Sevé de tudo tentô,
Pr'á de Zef
a tirá o fogo desoladô.
Mas Zefinha nasc
eu torta e com muitos outros ela sempre errô,
E Sevé, coitado, até de casa mudô,

Mas o fogo da Zefa nunca apagô.

O bom rapaz, cansado de tanto calô,

Resolveu na rua muié mió procurá.
Zefinha endoidô, pois depois que a idade chegô,
Home como Sevé ela num vai mais encontrá.
Sem sabê o que fazê, gemendo de tanta dô,
Até um mac
umbeiro a Zefinha procurô.
E, milagre do milagreiro, com ela de novo o bom Sevé deitô.

Mas o capeta, que às muiés pecadoras num cessa de atentá,
Na casa da vizinho um grande fogo pegô,
Só pr'á cu
m isso de novo o pecado pr'á Zefa mostrá.
No meio da correria, muita água rolô,
Pr'os bom
beiros valentes o grande fogo apagá.
Excitada que nem mariposa, Zefinha corria fingindo querê ajudá.
Abre torneira, pega balde, um corajoso bombeiro o belo colo dela muiô,
E, braba como ela só, a véia raivosa logo a gritá começô.
Pelos gritos e pelo fogo, o bombeiro Mené logo viu da Zefa se tratá.

Amô velho nunca foi de se esquecê,
E Mené foi chamado pr'um café mais ela tomá.
Café puxa conversa e o bombeiro Mené à véia voltô a encantá.
No meio do encantamento,
Quando Mené o fogo tentava
abaixá,
Em casa
chegô Sevé e, cego com a traição,
De Zefinha tudo quebrô.

E até Mené apanhô.

A história ainda é longa e o drama de Zefa num acabô,
Pois pr'á zona ela voltô e o bombeiro Mené na casa dela ficô.
A casa que foi de Zefinha hoje é hospedaria,

E o garboso Sevé, mais o fogoso Mené, lá recebe as Marias,
Que, no desespero, o grande fogo querem apagá.

A Zefinha de tudo tentô, pr'á com um dois reatá,
Mas de nada adiantô,

Já que o formoso Sevé e o bombeiro Mené
Cum ela num querem mais nada,
Nem mesmo o grande fogo apagá.

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*Texto de ficção e sem direitos autorais. Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais é mera coincidência.