sábado, 19 de junho de 2010

A FOGUEIRA TÁ QUEIMANDO EM HOMENAGEM A SÃO JOÃO

 












 A última prova escrita do primeiro semestre de 1957 havia terminado e, provavelmente, eu fizera uma bom teste, porque ainda hoje recordo a euforia com que saí do Ginásio São Luiz e vim para casa, numa época de poucos perigos nas ruas,  de tranquilidade, de quase nenhuma violência urbana. O único cuidado que eu tinha de ter era ao atravessar a rua Amélia, porque, além dos carros em disparada, nenhum dos perigos modernos rondava a minha inocência infantil. 

A minha excitação e alegria eram visíveis. Naquele tempo, sem nenhum motivo particular, eu preferia as férias de meio do ano às férias grandes, que se estendiam do final de dezembro até o início de março. Pensando bem, acho que a preferência era porque,  em junho/julho,  a minha família não saía da Rua do Cupim e, desse modo, eu podia ficar em casa lendo um monte de gibis, ou de Cinelândias e Filmelândias. Ao fim da tarde, depois do banho, eu ia para a rua, brincar de "dono de calçada", "garrafão", "pega", "lacochia" e outros jogos tão comuns à época.


Era o dia 23 de junho e eu tinha de correr para chegar cedo em casa e separar a lenha com que iríamos fazer a fogueira. Já passava do meio-dia quando dobrei a esquina da Rua do Cupim e, correndo, entrei em casa,  - "Maria, Matilde, cadê a madeira velha que papai mandou separar para queimar de noite?" Pobre Maria, pobre Matilde, tinham de parar os seu afazeres e virem correndo para o quintal, mostrar àquele mini ditador a lenha já separada, que incluía de tudo um pouco, troncos secos de alguma árvore cortada, pernas de uma mesa ou  de uma cadeira quebradas e até os tacos inservíveis para jogar hóquei que o meu irmão, fugindo ao habitual, havia ofertado para ir ao fogo. 


- "Pronto, agora que já viu qual será a madeira que vai pr'o fogo, vá tomar banho e, depois, trate de almoçar  bem, porque lá pelas 3  horas vamos começar armando a fogueira", dizia Maria, na sua função de ama zelosa e no exercício constante da maternidade, mesmo sem ter sido mãe de filhos do seu próprio ventre. Que saudade de Maria! Obedecendo ao comando, e sob o controle de minha mãe, fui tomar banho e já estava à frente da mesa quando papai e o meu irmão chegaram para o almoço. 


O enorme pacote com os fogos que seriam queimados à noite, comprados no Bazar Caramuru, na rua da Concórdia, foi guardado cuidadosamente e eu estava proibido de chegar perto daquele incendiável embrulho. Durante o almoço, a minha irmã só falava no concurso de Miss Brasil, ocorrido na noite anterior, no Hotel Quitandinha, em Petrópolis, que dera a vitória a uma lindíssima amazonense, de origem lusitana, tal como nós, chamada Terezinha Morango. O Jornal do Commércio e o Diário de Pernambuco traziam uma foto com a nova Miss Brasil  ao lado da segunda colocada,  a candidata de Minas Gerais, onde se atestava a superioridade da beleza de Terezinha Morango. Meu pai já estava intimado a comprar a "Manchete", que deveria sair em breve com todas as fotos do concurso.


O meu irmão, por seu lado, ainda não se cansara de falar sobre a classificação do Brasil para a Copa do Mundo de 1958.  Em abril daquele ano de 1957, a nossa equipe, primeiro, com um empate, depois, com uma sensacional vitória, ambos contra o Peru, conseguira a tão almejada classificação. Ele e o papai se questionavam, então, sobre o que iria acontecer um ano mais tarde, em junho de 1958: -"Será que iremos conseguir suplantar a força alemã, campeã do mundo?" -"E a Suécia, jogando em casa, como irá se comportar?"  A minha mãe nada dizia, apenas escutava, como era o seu hábito. Eu não tinha vontade de comer e não me importava com misses ou com futebol, queria mesmo era armar a fogueira em homenagem a São João. 


De repente, a meio do almoço, ouço um grito de Matilde, - "Corra Maria, venha me ajudar a tirar a lenha do quintal porque vai começar chovendo". Minha mãe não teve tempo de dizer - "Acabe de comer, menino" - e eu já estava no quintal, ao lado de Maria, Matilde e dona Maria (filha de escravos, idosa e corpulenta, que era a lavadeira da casa ), recolhendo a madeira exposta e guardando na garagem. "Santa Clara clareai, peça a Deus que faça sol. Vai chuva vem sol" era entoado pelo quarteto, com dona Maria rezando estranhas orações, enquanto pitava o seu cachimbo. E o sol, com a ajuda de Santa Clara, voltou a brilhar na cidade do Recife, naquela véspera do dia de São João.


A tarde havia sido de trabalho intenso, mas o resultado obtido enchera a todos de orgulho. A fogueira estava pronta com as bandeirinhas colocadas em volta, os balões coloridos já estavam pendurados nos galhos da goiabeira e do frondoso sapotizeiro, e até o cágado já fora preso no quarto dos fundos, para não fugir pelo portão ou, quem sabe, derrubar a nossa fogueira. O gato angorá, de nome "Kiss," fora cuidadosamente trancado no quarto da minha irmã. "Menininho", o cachorro da família, já tentara fazer pipi na armação que sustentava a fogueira, mas dona Maria, vigilante, reprimira o  obsceno ato com uma varinha que sempre tinha à mão. Pobre Menininho, recolheu-se ao terraço e conseguiu se enfiar debaixo da mesa do rádio, para evitar varas, fogos e crianças.


A mamãe não gostava de que muitos meninos ou meninas frequentassem a nossa casa, por isso, com exceção de nossos vizinhos mais próximos, Augustinho, Cláudio, Nilza e Carminho, eram poucos os "amigos da rua" que costumavam nos visitar. A noite de São João, porém, era uma exceção e o portão grande ficava aberto até mais tarde, para que a criançada pudesse entrar, ajudar a acender a fogueira, soltar fogos e fazer adivinhações. Se não me engano, fora o meu pai quem dera essa ordem e o resto da família apenas obedecera, gostando ou não.


Às seis horas em ponto, depois de novas orações  e cantorias a Santa Clara, quando despontava a primeira estrela, a fogueira foi acesa. O quintal estava cheio e eu, feliz , ao lado, além dos já citados vizinhos, de outros amigos,  Marcelo, Célia, Hélio, Hebe, Armandinho, Bete e tantos outros, próximos e menos próximos, que, como eu, tinham o encantamento dos 10 anos. 

Papai, meu irmão, eu e alguns dos meninos éramos os responsáveis pela queima dos fogos, vulcões, tiros de bengala, bichas de rodeio, traques de massa e tantos outros que enchiam de luz e barulho o nosso quintal, assustando os morcegos e encantando a todos nós. Naquele dia, até Aguinaldo, amigo um pouco mais velho do que eu, que tinha vindo devolver umas revistas emprestadas, entrou para ajudar a acender a fogueira. Se bem me lembro, ele não era dado a esses folguedos, mas, na noite de São João, as exceções  eram por todos abertas, até mesmo por Aguinaldo!


Não sei porque, passadas mais de cinco décadas, fui lembrar hoje, em Brasília, do dia 23 de junho de 1957, da Rua do Cupim e daquela festa de São João no querido Recife. A nossa casa já não existe, mas a  nossa fogueira continua queimando e os nossos fogos continuam brilhando em homenagem a São João (ao menos, no meu pensamento e incontido desejo), só não quero que soltem fogos barulhentos, para não acordar às pessoas queridas, que estavam lá naquela noite e que agora estão, quase todas, dormindo, dormindo profundamente, como disse uma vez, o poeta Manuel Bandeira.


"Boa noite, meus senhores todos e minhas senhoras todas, também..."

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