"Se há uma noite que vai ficar marcada para sempre na história do Theatro Santa Isabel - um dos orgulhos de nossa capital -, vai ser, sem dúvida, a noite de hontem, sábado, 29 de outubro de 1932. O mesmo palco em que Castro Alves cantou em versos o seu amor por Eugênia Câmara, rendeu-se à exuberância e às marchinhas da pequena que o Rio de Janeiro nos honrou enviar, Carmen Miranda. Com tanto it e com tanto rebolado, quem não se renderia aos encantos daquela bonequinha carioca de apenas um metro e meio de altura ?
A platéia era constituída pelas melhores famílias de nossa sociedade, com as senhoras exibindo e pavoneando os seus chapéus e as senhorinhas, os solidéus, ambos dignos de fazer sucesso em Paris ou em qualquer outra capital da Europa. Entre as pequenas, destaco, pela elegância e candura, a senhorinha Alaíde de Castro Mello, que em breve será nora dos barões da Várzea. As torrinhas estavam repletas de moços, em sua maioria, estudantes, que entoaram gritos de “Morena do Céu”, tão logo Carmen adentrou o palco.
A minha Olivetti precisaria ter emoções em lugar de teclas para transcrever o delírio do nosso atheneu no momento de apresentação da cantora, que foi feita por ninguém menos do que o poeta pernambucano de Palmares, Ascenso Ferreira. A muito custo, consegui copiar no meu caderninho algumas passagens do verbo ilustre do autor de “Catimbó”. Ascenso subiu ao palco e introduziu Camen Miranda ao público do Santa Isabel, em inesperado momento de silêncio: “Com ela, a tragédia foi morta pelo bom humor e a tristeza nativa mudou-se em festa de batuque e bombos”. Ainda me emociono quando transcrevo o final da apresentação que o poeta "recitou" com aquele vozeirão característico: “Deus permita que tu botes diamantes pela boca”. E botou mesmo, diamantes em forma de canções!
“Morena do Céu, Morena do Céu” aclamavam os recifenses, enquanto jogavam serpentinas no palco, embevecidos com a beleza da cançonetista (refiro-me, em particular, aos cavalheiros) e cheios de orgulho quando ela "rasgou" a canção "Eu gosto da minha terra". A noite memorável terminou com um buquê de lindas flores entregue a Carmen Miranda pelo Interventor Carlos Lima Cavalcanti, que nem parecia a alta autoridade que ele é, tão grande era a alegria e tão visível o orgulho que demonstrava, sem dúvida por estar ao lado da cantora.
Esta manhã, fui informado de que Carmen também recebeu um ramalhete sem cartão identificador, provavelmente do mesmo admirador oculto que tem passado os dias de “tocaia” nos arredores do Hotel Central, onde ela está hospedada. Será que tem algum mistério na vida de Carmen Miranda?
A ilustre cantora carioca (que há alguns anos declarou ter nascido em Portugal) chegou ao Recife, vinda de Salvador, no vapor Ruy Barbosa e só voltará à Cidade Maravilhosa depois do dia 5 de novembro, desta feita no luxuoso Zelândia. Quem ainda não viu o espetáculo, vá ver e não se arrependerá.
Senhoras e senhorinhas, minhas fiéis leitoras destas mal traçadas linhas de todos os domingos, concluo esta crônica com a ousada afirmação de que - com a presença de Carmen Miranda na terceira maior metrópole do Brasil - até o astro Will Rogers, que também está entre nós, ficou em segundo plano. Perdoem-me as admiradoras de Will...
Recife, 30 de outubro de 1932 -
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