sábado, 7 de junho de 2008

A PRIMEIRA CRÔNICA DE RAOVAL BERIOR




Heureca! Esta é a única exclamação com que posso começar a postagem de hoje. Os leitores deste blogue devem lembrar que, em 8 de março deste ano, publiquei uma crônica que encontrei escondida entre teias de aranha e misteriosos alfarrábios de papel amarelado de um jornal chamado “Memória”, tão ímpar e desconhecido quanto o cronista que a escreveu, Raoval Berior, ambos de um Recife e de um tempo que, se um dia existiram (Recife e o tempo), já não existem mais.

Raoval Berior, todos sabem, começou a publicação de suas crônicas em dezembro de 1930 e, heureca de novo, encontrei a primeira crônica que o periódico Memória publicou com o título “Nem só revoluções nos trouxe 1930” !


Transcrevo a seguir, com a grafia original, o primeiro texto desse cronista de nome tão estranho, que me surpreendeu não só pela ousadia do título, em uma época de exceção, mas também pela intimidade que o autor demonstrava ter com o poder existente:


"Nem só revoluções nos trouxe 1930

Permitam as excelentíssimas senhoras e senhorinhas, leitoras deste Caderno Social do nosso periódico “Memória”, que não é o maior mas é o melhor e o mais crítico de nossa sociedade, que este humílimo periodista (se não de direito, ao menos de fato) adentre as vossas residências todas as manhãs de domingo a partir desta data, 14 de dezembro. Se me dirijo apenas às senhoras e senhorinhas é porque os cavalheiros da Mauricéia de hoje estão mais preocupados com a política (que fervilha como nunca), com o football e com as polacas dos arredores da Rua da Palma do que com os acontecimentos sociais de relevo, a moda importada de Paris ou os chapéus cuidadosamente elaborados pelas nossas chapeleiras para adornar as encantadoras cabecinhas de suas futuras esposas. Portanto, senhoras e senhorinhas, aos domingos (com a devida licença dos vossos noivos e maridos) este cantinho do nosso periódico será exclusivamente dedicado às gentis leitoras.


Faltam 16 dias para que 1930 chegue ao fim e não sei se deixará saudades... mas isto não é assunto para a nossa crônica. Cerro os olhos para rever o que de importante nos aconteceu durante este anno e não quero lembrar do dia 26 de julho, nem de confeitarias, nem, muito menos, de assassinatos ocorridos dentro delas. quero mesmo é recordar dias de glamour e o dia 22 de maio foi, entre outros, um dos mais importantes para a nossa cidade, não só em 1930, mas nos últimos tempos.

Na tarde de 22 de maio, antes de apanhar o bonde no Livramento para ir, com uma das minhas irmãs, ao Campo do Jiquiá, ainda consegui ouvir as sirenes dos navios e o carrilhão do Diário de Penambuco tocando e foi aí que comecei a ficar deslumbrado... Já era noite quando vislumbrei aquela enorme baleia se movendo no ar, aquele navio avoando nos ares (com a devida licença do poeta Ascenso Ferreira) e buscando a torre de atracamento. Era o Graff Zeppelin. Ao acenderem os faróis de popa e de proa tivemos a exata dimensão da aeronave, que mais parecia vinda de outros mundos do que do planeta Terra. Confesso que me arrepiei todinho e nem prestei muita atenção quando uma macaibeira foi pelos ares depois de, por engano, um dos cabos do zeppelin ter sido amarrado ao seu tronco.

A fidalga acolhida que o Governo do Dr. Estácio Coimbra prestou ao comandante Hugo Eckener, a Sua Alteza Real o Infante de Espanha e aos demais passageiros foi digna da cidade e do povo altaneiro que somos. Ainda lembro o orgulho do Dr. Gilberto Freyre, secretário particular do senhor governador Coimbra, ao se dirigir, como primeiro cidadão brasileiro, àquelas autoridades. Depois da recepção oficial, fui um dos privilegiados que pôde apreciar o magnífico salão de festas, a sala de leitura e a sala de jantar do monstro voador atracado no Jiquiá.

O único fato menos prazeroso daquela visita ao Campo do Jiquiá foi a dor-de-cabeça que fiquei por causa dos estrondos do motor da aeronave. Nada que não tivesse sido resolvido com uma ida à pharmácia do bairro de São José e com duas cafiaspirinas, que mandaram o mal-estar para os ares, tal e qual a macaibeira.

Este anno quase findo também nos presenteou com outra modernidade de ficar de queixo caído: a sala de espectáculos do Parque inaugurou, no dia 24 de março, o cinema sonoro. Eu estava lá e nem acreditava que podia ouvir as próprias vozes de Corinne Griffith e Victor Varconi, no filme A Divina Dama. A minha mãe chorou tanto que teve de sair para os jardins para tomar um pouco de ar fresco.

Em 1930 fiquei triste quando o "Helvética" da rua da Imperatriz mudou de nome e de atividade, passando a ser o "Centre Goal", que de centro de diversões não tem nada ou quase nada. Sugiro ao Dr. Lauro Borba, nosso ilustre prefeito, e também ao Interventor Carlos Lima Cavalcanti que dêem um saltinho no tal "Centre Goal" e vejam o que por lá se passa... A rua da Imperatriz não é mais a mesma...

Recife, 14 de dezembro de 1930.
Raoval Berior"

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