sábado, 23 de fevereiro de 2008

MAIS MISTÉRIO NO PARQUE HOTEL*

(continuação)



O ascensorista parecia embevecido com o ponteiro (se é que assim podemos chamar) que, ao alto da porta, indicava o andar em que o elevador estava, pois em nenhum momento baixou o olhar daquele indicador. Alexandra, depois de ter tirado o chapéu, arrumava os negros cabelos, deixando mais à mostra toda a beleza do seu rosto. O chanel inebriante, a que me referi há pouco, inundava o ambiente a cada um dos seus delicados gestos e eu, pobre de mim, estava petrificado, hipnotizado, embriagado com a beleza e com o perfume.

Segundo piso!”, anunciou o ascensorista. A Condessa de Leicester saiu do elevador sem nem ao menos olhar para trás. Ingrata! Antes mesmo que eu chegasse ao meu quarto, ela já abria a porta do vinte e cinco e chamava pelo filho, "Timothy, Timothy!" Quando me aproximei da porta daquele que agora era o meu refúgio, pude notar que ambos conversavam e riam divertidamente. Foi a muito custo que não fiquei parado, para tentar ouvir o que mãe e filho falavam. Noblesse oblige. Fechei a porta.

Mal eu havia começado uma desesperadora busca para encontrar a máscara trazida de Veneza há mais de dois anos, a campainha do quarto tocou. Passado o susto provocado pela estridente campainha (nunca antes havia me assustado), abri a porta e deparei com a camareira que trazia nos braços - como se um tesouro fosse - a Tenue de Gala, de uso obrigatório na soirée da noite. Com uma voz quase inaudível, a funcionária do Parque Hotel que, pelo uniforme diferenciado, deveria ser a chefe das camareiras, pediu autorização para colocar a vestimenta sobre a cama. Com um gesto indiquei que sim e continuei a procurar a máscara.

Depois de alguns instantes notei que a camareira ainda não havia saído e, quando me voltei, deparei com ela parada, com o olhar fixo em mim, como se estivesse diante de um fantasma. Ao virar-me para ela, imediatamente baixou a vista. O tom de sua pele era de um moreno muito claro e deveria ter cerca de sessenta anos, pouco mais ou menos. Não era alta nem baixa e os cabelos brancos faziam com que a touca que usava passasse despercebida em meio a tanta alvura. Imaginei que a razão da espera seria para receber algumas moedas, comecei a procurá-las na algibeira e ela, sem levantar os olhos do chão, perguntou em um português com forte acento castelhano ─ “Vossa Excelência é do Brasil, não é?”

Fiquei tão surpreso com o fato de uma simples camareira dirigir-se a um hóspede, que não respondi de imediato, Ao se dar conta do descumprimento de uma das regras básicas da hotelaria, ela quase que foi ao chão, em uma vênia reverencial, para pedir desculpas pelo atrevimento da pergunta. ─ “Ora essa, afinal não foi tanto atrevimento assim. Sim, sou brasileiro, como já o deveria saber. E, pelo que ouvi, você também é”, concluí. Em lugar de resposta à pergunta que eu fizera, fui surpreendido (e como!) com outra pergunta. ─ “Vossa Excelência é da Província de Pernambuco?”
Embora, eu começasse a ficar irritado com o interrogatório, acenei afirmativamente. Não sei se deveria ter respondido ou não, já que depois daquela resposta ela levantou o olhar e fixou nos meus olhos, o que muito me perturbou pela insolência e por algum outro motivo que ainda não sei qual. ─ “Desculpe, mas preciso começar a aprontar-me para o baile de logo mais e não posso ficar aqui com conversas sobre as minhas origens”, disse-lhe eu, já em tom bastante ríspido. De nada adiantou, pois ela continuou, para minha estupefação, ─ “Sem dúvida que é o filho mais velho do Barão da Várzea, ou estarei errada?” Sentei no pufe que estava ao meu lado, para não demonstrar surpresa, e disse ─ “Como sabe?” ─ “Impossível não ser, Vossa Excelência é a cópia fiel do que era o senhor Barão há quatro décadas atrás,” afirmou a camareira.

Tanta coincidência, somando-se a tudo o que eu já havia vivido naquele sábado, fez com que eu ficasse sem reação. Ela aproveitou e continuou, ─ “Meu pai era o feitor do do senhor seu avô e minha mãe, a dama de quarto da Baronesa, avó de Vossa Excelência. Nasci perto do engenho e passei lá a infância e parte da juventude. Até hoje lembro do cheiro da terra e ainda sonho com o fruta-pão quentinho que a minha mãe fazia para o nosso desjejum. Os meus pais desapareceram em uma queimada do canavial, nunca encontraram os corpos e eu, sem mais ninguém, vim para estas terras, em um vapor de que já esqueci o nome.”

Era informação demais para o meu cérebro assimilar em tão pouco tempo. Olhei mais uma vez aquela mulher de expressão facial tão sofrida, mas que conservava ainda traços que indicavam o quanto deveria ter sido bela, e disse-lhe ─ “Conversaremos em outra ocasião”. Ela já se retirava, quando eu resolvi perguntar: “Qual é o seu nome e em que ano você veio para o Uruguai?” ─ “Isabel, senhor e saí de casa no dia em que alguns comemoravam os três anos do golpe republicano que expulsou os nossos Augustos Imperadores, 15 de novembro de 1892. Em breve, completarei quarenta anos de nova pátria. Com licença”. Dito isso, ela desapareceu no hall de mosaicos azuis acinzentados.


Recomecei a busca da máscara veneziana, voltei a pensar em Alexandra e decidi que iria investigar a história daquela mulher quando voltasse para Pernambuco. Meu pai deveria lembrar de alguma coisa. Pensei melhor e resolvi que iria perguntar à mamãe, pois o velho Barão da Várzea - meu pai -, nos seus setenta e oito anos, já não lembrava de muita coisa do passado (ou não queria lembrar).

Decidi então que, a partir daquele momento, eu me concentraria apenas no baile e em divertir-me, pois no dia seguinte, 10 de julho, seria o meu aniversário de quarenta anos (pena que ninguém no hotel soubesse!).

Camareira? Brasileira? Monárquica? Eu não tinha mais dúvidas. Fora ela a pessoa que conseguira os nomes dos moradores do quarto vinte e cinco do Parque Hotel.


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*Os mistérios no Parque Hotel já foram contados em três postagens anteriores: 27 de outubro, 3 e 11 de novembro de 2007.
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