sexta-feira, 2 de novembro de 2007

PARQUE HOTEL, 9 DE JULHO DE 1932

(continuação) Cerca das três horas da tarde de hoje, depois de dormir a reparadora sesta vespertina, achei que nada seria melhor do que trocar de roupa e ir dar uma volta, para apreciar o sol de inverno em Montevidéu. Saí do quarto vinte e sete, onde estou hospedado durante todo este mês de julho - hospedo-me sempre do lado ímpar da numeração -, parei para apreciar os mosaicos que cobrem o piso do segundo andar e, inesperadamente, sou surpreendido pela abertura da porta do quarto ao lado do meu. O hall superior estava vazio àquela hora e a abertura repentina da porta assustou-me, mas, logo em seguida, que grata surpresa! Quem sai daquele quarto? A jovem inglesa que tanto me impressionara há alguns dias. Estava mais deslumbrante do que nunca, com aquele mesmo ar distraído que me chamou a atenção quando eu a vi, pela primeira vez, no domingo passado, dia 3 deste mês (sempre gostei de guardar datas).




Parece impossível que, estando ambos no mesmo hotel, só a tenha voltado a encontrar seis dias mais tarde. Certamente, ela não passou a semana no hotel e eu até já a havia esquecido, mas aquela inesperada aparição fez com que recuasse seis dias e, confesso, foi com um leve tremor que tirei o chapéu, cumprimentando-a.

O cabelo negro e curto continuava impecável, com dois pega-rapazes na testa, conforme o determina a moda atual. A pele, de uma alvura translúcida, era complementada pelo branco do vestido e pelo tom pastel do imenso chapéu, fazendo-a parecer ainda mais sedutora do que da primeira vez em que eu a havia visto. Os olhos - ah, os olhos! São tão verdes! Emoldurados por longos cílios negros, eles fizeram-me lembrar de outros olhos de um verde igualmente profundo e olhar curioso, que tanto me chamaram a atenção faz hoje quase uma semana! Fixando o meu olhar naqueles olhos verdes e selvagens, que me hipnotizavam, pude notar uma diferença marcante entre os olhos da mãe e os do filho (todos os que acompanham estas crônicas devem recordar de que eu escutara, inadvertidamente, o jovem que a acompanhava chamá-la “mammy”, tal como o título do filme de tanto sucesso há dois anos e no qual Al Jolson fez rir meio mundo). Naquele momento, eu acabara de confirmar que a diferença estava em que o verde dos olhos dela era uma cor alegre, com vida, com luz interior, enquanto que o verde dos olhos que me observaram através do refresco de limão era de uma tristeza infinita, incompatível com o vigor da juventude do seu dono. Mistérios dos olhos verdes!


A dama inglesa - com enormes colares dançando ao peito e com o seu vestido branco esvoaçante - limitou-se a fazer um leve, quase imperceptível, cumprimento com a cabeça (mas que me pareceu dizer tanta coisa) e saiu do meu ângulo de visão. Percebi que ela descera as escadas rumo aos salões, ou mesmo para fora do hotel, ficando eu, mais uma vez, perdido com minhas lembranças. Desta vez, foi ela quem desapareceu repentinamente e, sem mais delongas, recoloquei o meu pincenê e continuei apreciando os mosaicos do andar onde estou hospedado, para ver se decobria a origem dos mesmos. Esqueci, naquele momento, a misteriosa dama.


Para aproveitar o fim de tarde ensolarado, ainda que com o vento sul incomodando um pouco (gosto de Montevidéu no inverno), resolvi descer até ao paredão que nos protege desse rio quase mar, rota de tantos navegadores, incluindo Maria de Sanabria, e que se espraia à frente do Parque Hotel. Rio da Prata, o rio que levava ao sonho do Rei Branco, ao mundo desconhecido de Potosí iria, sem que eu ainda o soubesse ainda, levar-me também à prata dos antigos colonizadores.



Saí do hotel, atravessei a rua, sentei-me em um banco de pedra e vi que um dos recepcionistas do hotel estava ali conversando com alguns amigos, enquanto aguardava a hora de voltar ao serviço. Chamei-o e, por meio do péssimo, mas sempre resultante, hábito de uma propina polpuda, pedi para ele identificar os nomes dos quatro ocupantes do quarto vinte e cinco.





Esqueci o tempo e já anoitecia quando resolvi voltar ao hotel. Logo à entrada, o funcionário da propina referida aguardava-me com um papel entre os dedos que, sorrateiramente, passou para as minhas mãos, ao mesmo tempo em que perguntava se eu não iria participaria do grande jantar dançante de logo mais à noite, pois já haviam esvaziado os dois salões e começavam a distribuição das mesas. Sem pensar, respondi que sim. - "Quero a mesa vinte e cinco", disse quando já entrava no elevador.


Abri o bilhete e consegui satisfazer parte da curiosidade: “Alexandra Mary of Leicester, duquesa viúva de Leicester e Timothy Edwards of Leicester, conde de Leicester.”Ao sair do elevador algo me pareceu diferente. Corri para a grande janela frontal e não acreditei no que via! Eu voltara àquele outro mundo (o de 2007), a um mundo colorido, ruidoso e sem encanto. A praia que eu podia ver da janela era a mesma, mas estava diferente da que eu acabara de deixar . O Parque Hotel, mais uma vez, não era o Parque Hotel!
Pensei, então, que teria de fazer alguma coisa para voltar ao meu mundo, ao jantar do sábado 9
de julho de 1932. Fechei os olhos, mas nada aconteceu.
Devaneios de uma mente inconformada!


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