quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

OS PREGÕES DO RECIFE

Em uma manhã chuvosa do início desta semana, enquanto eu fazia a barba e escutava música no mini-rádio de pilhas, uma emissora transmitiu o velho fado “Lisboa Antiga”, cantado por Francisco José.

"Lisboa Antiga", fado, Francisco José! A que período pertence tudo isso? Ao Jurássico, devem pensar os mais jovens. E têm razão, visto que a música e o intérprete são de uma época distante e desconhecida para a juventude eletrônica dos tempos atuais. Quanto ao fado, ele continua bem, obrigado!

Não é sobre o Jurássico e seus dinossauros que quero escrever, nem sobreLisboa - a antiga e a atual - e, muito menos, sobre fados ou fados canções. Qual é, portanto, a conexão entre o rádio tocar um velho fado canção à hora em que me barbeava e o título desta postagem?

Quem conhece "Lisboa Antiga" (a música) sabe que o último verso faz referência aos “pregões matinais que já não voltam mais” e aí está a resposta. Essa citação avivou a memória e me fez lembrar dos pregões de um Recife muito distante no tempo - mas não tanto no espaço - e que também não voltam mais. Lembrei tanto que, por um triz, não me cortei! Decidi, então, escrever este texto.

As pessoas que julgam que só na antiga Lisboa é que havia "pregões matinais que já não voltam mais", estão muito enganadas, pois o Recife também os tinha, não apenas matinais, mas vespertinos e noturnos. Os ambulantes de minha rua (quem tem lido este arremedo de diário sabe qual rua é a que chamo de minha) começavam cedo o apregoado. Hoje, com o distanciamento temporal, posso avaliar em sua plenitude o prazer que me dava, durante as férias escolares, ficar todas as manhãs em casa com vários gibis para ler, dois pães com manteiga-e-açúcar para comer e os pregões lá fora para ouvir.

O primeiro a passar na rua era o homem do peixe, que apregoava “Olha o peixe fresco! Quem vai querer?”. As regras do bem escrever no vernáculo proíbem que reproduza aqui o som que eu ouvia. Que me perdoem os mestres, mas o som que os meus ouvidos de criança captavam era exatamente este: “Óia o pêxe frêxco! Quem vai querêê?”, com muitos “xises” e sem nenhum “erre” final pronunciado, como é característico do falar popular do Recife. Seu Pedro era o “homem do peixe” e durante anos habituei-me a vê-lo adentrando o portão com o melhor pescado que havia saído naquela madrugada das jangadas da "Balança de Olinda." Quantos seriam os quilômetros diários que aquele homem andaria equilibrando, ora aos ombros, ora à cabeça - conforme a quantidade -, o balaio ou os balaios repletos dos peixes e crustáceos que apregoava com um pregão melodioso entoado pela voz de caboclo?

Mais tarde, chegava o homem da verdura e da fruta e o pregão – ainda que no mesmo ritmo daquele do vendedor de “Peixe fresco” - mudava para - “Verdureiro! Maxixe e quiabo fresquinhos, diretos da granja. Olha a laranja lima. Tem laranja da Bahia”. Nem sempre a "Maria lá de casa" comprava verdura ou fruta ao verdureiro ambulante, pois achava que na feira do Parque Amorim (aquele parque do primitivo peixe-boi e do famoso papa-figo) elas eram mais baratas e mais frescas do que as oferecidas na nossa porta. Algumas vezes, o pregão era substituído por - “Macaxeira branca, da boa. Quem vai querer?”, ou então pelo clássico - “Óia” o inhame, que ele hoje tá bom". A mudança na oferta era feita de acordo com o que ele mais precisava vender naquele dia.

No início da tarde, passava o emblemático mascate, com um pregão mais simples, mas não menos melodioso - “Mascaaaate”, apregoado ao mesmo tempo em que, com uma das mãos, percutia a matraca que improvisara e, com a outra, conduzia a obediente mula. O estoque era de fazer inveja a muitos armarinhos famosos e tinha desde inúmeros botões, de todos os tamanhos e cores, a alfinetes, ilhoses, linhas e muito mais. Cada gaveta da carroça que ele abria era um mundo desconhecido, no qual eu entrava e deixava voar a imaginação.

Ao fim do dia, depois do banho, era a vez do menino do cavaquinho - “Cavaquinho docinho, três por quinhentos réis! Quem quer? Tá acabando”. Em seguida, o homem do algodão doce e depois o da cocada. À noitinha, sem falta, vinha o homem do cuscuz. De longe, ouvia-se a voz de barítono que entoava o pregão - “Cuscuz quentinho, hoje está bom”, complementado pelo silvo de um apito exclusivo. - “Maria, fique de olho no homem do cuscuz, porque eu vou querer dois para a ceia”, dizia mamãe. E lá ia a pobre Maria para o muro atocaiar o homem e escolher os cuscuzes.

À noite, depois da ceia, os adultos colocavam as cadeiras na calçada para jogar prosa fora e a criançada brincava de dono de calçada, de lacochia (“corre, corre lacochia, tá de noite, tá de dia ...”) ou de garrafão, até que, lá pelas oito e meia, ouvia-se no começo da rua o pregão favorito de todos - “Sorvete, olha o sorvete, tem de cajá, mangaba e goiaba” - Que delícia! Ainda vislumbro a postura elegante daquele neto de Angola ou do Congo, que trazia à cabeça uma enorme lata sobre rodilha de trapos, e o alvoroço que tomava conta de cada um de nós. Além da lata com o sorvete, que antes fora lata de manteiga, trazia outra, em forma cilíndrica, com os casquinhos de servir o sorvete -. “Óia u sôvete! Tem de sapoti, cajarana e ingá”, naquela época, era assim que me soava o pregão e é assim que, neste exato momento, ele ainda me soa. Quantos sabores deliciosos e quantas crises de garganta sofridas, por tomar sorvete quando estava suado das brincadeiras!

Será que ainda há pregões em alguma cidade? Haverá pregões à antiga, com aquela música de ritmo leve e morno, misto de récita e de canto, haverá? Talvez sim, na Pasárgada de Manuel Bandeira ou na Utopia de Morus, ambas cidades irreais, ambas, quiméricas.

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