Quem não sabia ainda, da leitura de outras postagens do “Lugar do Souto”, vai saber agora. Nasci no número 236 de uma rua do Recife que tem o bizarro nome de “Rua do Cupim” (gosto de colocar maiúsculas em “Rua” quando me refiro a essa rua em especial). A rua na qual eu nasci já teve, certamente, bem mais cupins, bem mais morcegos (lembram dos morcegos referidos na postagem “A Rua do Padre Inglês”?) e também bem mais flamboaiãs do que tem hoje!
Por que não a chamaram, então, Rua dos Flamboaiãs? (Descansem, não vou sugerir a denominação "Rua dos Morcegos").
Onde já se viu nome de inseto atribuído a uma rua? Defesa ecológica? Ameaça de extinção? Nem de longe. Homenagem ao inseto, portanto, não é, já que aquele ortopteroide, do grupo denominado Dictyoptera, mais do que alvo de homenagens, tem sido mesmo é perseguido e objeto de destruições em massa por parte dos moradores da rua que supostamente o homenageia. Aliás, se assim não fosse, acho que a rua inteira já teria sido devorada pelo insaciável insetinho branco, que saboreia tudo o que encontra à frente, desde papel e madeira a tecidos, cerâmica e até plásticos. Que apetite voraz!
Lembro de um ano em que estávamos veraneando em Olinda [– que vontade de divagar e mudar o tema para falar dos meus verões naquela cidade, mas resisto à tentação “divagatória” e continuo falando do cupim, da rua que tem o seu nome e, daqui a pouco, do Clube de mesmo nome –] e constatamos, na volta das férias, que uma das gavetas da penteadeira de minha mãe - provavelmente a gaveta mais importante para o meu pai, pois estava sempre trancada à chave - não conseguia abrir. Puxa a gaveta de lá, puxa de cá, retira-se a de cima, depois a de baixo, consegue-se finalmente "arrancar" a que estava travada e, de repente, uma expressão de ódio nos olhos de papai e de pânico, nos de mamãe: a gaveta, antes cuidadosamente arrumada, era um amontoado de pó, de “panelas” e de caminhos bem traçados, por onde se agitavam os pobres cupins já prevendo o fim que os esperava.
Até hoje não sei o que foi destruído, mas pela fúria do meu pai, a partir daquele dia, contra tudo o que se assemelhasse ao bichinho, devem ter sido papéis muito importantes, pois foram mais de quarenta anos de ações de guerra cuidadosamente planejadas pela minha família, mas nunca vencidas inteiramente. Talvez por esse motivo os cupins passaram, naquela época, a ter a minha simpatia e apoio velado, principalmente pela admiração que eu nutria pelas táticas de guerrilha que eles sabiamente utilizavam, sempre se colocando em posição de vantagem contra os humanos agressores: mata aqui, renasce ali, destrói-se um caminho aqui, abrem-se outros nos lugares mais insólitos, destroem-se duas "panelas", constroem-se quatro, usa-se um inseticida recém lançado e eles logo arranjam defesas biológicas. Bravos cupins!
Alguns anos mais tarde daquele domingo de março dos idos da década de 1950, eu passei a comparar os nossos cupins com os heróis vietcongues lá do Vietnã, ou com outros heróis de outras guerrilhas bem mais próximas de minha rua do que aquela do sudeste asiático.
Deixando de lado os ortopteroides e voltando às razões do nome da rua, encontrei a resposta na Internet que descreve a existência, na década de 1880, de um “Clube” abolicionista que tinha por sede uma casa muito simples, com uma única mangueira, exatamente atrás daquela que um dia seria a garagem de nossa futura casa. O Clube do Cupim abrigava escravos foragidos e, em seguida, transportava-os por caminhos ocultos até ao Capibaribe e por ele, à liberdade em quilombos distantes. Para mim, aquela casa sem direito a placa e que hoje nem mais casa é, sempre foi a casa de “seu Benzinho e dona Alice", e o meu pai sempre achou que debaixo da garagem, ou em qualquer outro lugar do nosso quintal, rota dos cupins com os escravos, deveria haver um tesouro enterrado. Será que tinha? Será que ainda tem? Se tem, já não nos pertence, assim como a casa.
Na história dos movimentos abolicionistas em Pernambuco, o Clube do Cupim tem um lugar de destaque, apesar de pouco ter sido escrito sobre ele. A partir de 1880, multiplicaram-se no Brasil as sociedades contra a escravidão, que tinham como objetivo básico angariar fundos para comprar cartas de alforria de escravos. Em Pernambuco houve mais de trinta dessas sociedades, que foram a gênese do Clube do Cupim, pois muitos dos seus sócios fundadores já participavam ativamente de algumas delas.
Em 24 de março de 1884, quando o Ceará decretou a libertação de todos os escravos na Província, intensificou-se a campanha contra a escravidão em todo o país. João Ramos*, natural do Maranhão, mas que se mudou para o Recife aos 14 anos, foi o idealizador e fundador do Clube do Cupim e sonhava em concretizar também em Pernambuco o mesmo que fizeram no Ceará. Passou, então, a proteger escravos recomendados a ele, tornou-se conhecido dos negros que o procuravam pedindo ajuda para comprar suas cartas de alforria, prometendo pagá-las com o seu trabalho. Em 1883, com o auxílio de amigos, João Ramos já havia estabelecido uma rota segura para os escravos fugidos, enviando-os para Mossoró, no Rio Grande do Norte, de onde eram transferidos para Aracati e Fortaleza, no Ceará.
No dia 8 de outubro de 1884, João Ramos reuniu-se com mais onze amigos, na casa de um deles, o cirurgião dentista Numa Pompílio, na Rua Barão da Vitória, 54 (atual Rua Nova) para fundar uma sociedade não emancipadora, mas abolicionista e secreta denominada Relâmpago, que depois mudou o nome para Clube do Cupim. Não sei em que data a sede do Clube passou para a casa detrás da nossa.
A sociedade, sem estatuto, tinha por único lema a libertação dos escravos não importa porque meios. Como era uma sociedade secreta, seus sócios adotavam um “nome de guerra”, utilizando-se dos nomes das províncias brasileiras da época. Foram seus fundadores: João Ramos, presidente (“Ceará”); Guilherme Ferreira Pinto, tesoureiro (“Goiás”); Alfredo Pinto Vieira de Melo, secretário (“Minas Gerais”); Fernando de Pães Barreto, o orador do Clube (“Maranhão”); Numa Pompílio (“Mato Grosso”), João José da Cunha Lajes (“Amazonas”); Barros Sobrinho (“São Paulo”), Antônio Faria (“Rio Grande do Sul”); Gaspar da Costa (“Rio de Janeiro”); Nuno Alves da Fonseca (“Alagoas”); Alfredo Ferreira Pinto (“Bahia”); Manoel Joaquim Pessoa (“Rio Grande do Norte”) e Luís Gonzaga do Amaral e Silva (“Pernambuco”).
Em seguida, o Clube do Cupim passou a ter vinte sócios efetivos. Cada sócio tinha sob suas ordens um capitão, este, um subcapitão que, por sua vez, comandava vinte auxiliares. Todos tinham que adotar um “nome de guerra” utilizando os nomes de localidades brasileiras. Dessa maneira, sempre com vinte sócios efetivos, o Clube do Cupim chegou a contar com mais de trezentos auxiliares. Além dos fundadores, o Clube passou a contar depois com outros sócios efetivos.
Foram realizadas, no total, 21 sessões na sede do Clube, até que no dia 1º de novembro de 1885, resolveram dissolvê-lo por causa das perseguições. Não tinham mais um local fixo para reuniões, porém os cupins, como eram conhecidos os abolicionistas, continuavam a atuar clandestinamente. O seu trabalho era facilitado porque possuíam adeptos e simpatizantes em vários lugares. Havia uma grande quantidade de “panelas”, como eram conhecidos os esconderijos dos escravos que a sociedade ajudava a libertar. O termo “cupim” passou a ser usado até pelos abolicionistas do Rio de Janeiro que pretendiam “libertar os centros populosos e fazer roer o cupim no interior”.
A última façanha do Clube do Cupim foi o embarque de 119 escravos, realizado no dia 23 de abril de 1888.
Acabou o Clube do Cupim, continuou-se a praticar a escravidão no Brasil, ainda que para os negros ela tenha sido oficialmente extinta em 1888. O Clube permaneceu lembrado no nome da rua e eu descobri que afinal não são os meus simpáticos insetos a razão do nome da rua na qual eu nasci, mas sim outros cupins, humanos e que só queriam destruir a escravidão e não os papéis guardados pelo meu pai.
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* João Ramos é hoje o nome de uma rua paralela à Rua do Cupim.
FONTES:
SALES, Maria Letícia Xavier. O Clube do Cupim e a memória pernambucana. Revista do Arquivo Público, Recife, v.40, n.43, p.101-115, out. 1990.
VILELA, Carneiro. O Club do Cupim. In: SILVA, Leonardo Dantas (Org.). A abolição em Pernambuco. Recife: Fundaj. Ed. Massangana, 1988. p.25-35. (Abolição, 10).
3 comentários:
Prezado Alvaro,
Parabéns pelo site. Sou leitor assíduo. É melhor que muita revista de História e assuntos gerais que tem por aí...
Sobre o clube do CUPIM eu descobri que as reuniões também ocorreram no casarão dos BARBALHO que era engenho barbalho lá na IPUTINGA.
Esta casa existe até hoje e foi onde o historiador e jornalista MÁRIO MELO nasceu. Vou fazer uma visita por lá e te posto as fotos.
Abraço,
JORGE ORENGO
ótimo Blog.
Um pais como o Brasil, que dá tão pouca importancia a sua historia, precisa de blogs assim para divulgar coisas que a maioria dos livros "oficiais" nao divulga.
Quem tiver alguma informação sobre o clube, documentos, fotos, gravuras... qualquer coisa, entre em contato comigo.
Meu bisavô fazia parte do clube. E eu estou pensando en fazer uma animaçao ou uma HQ sobre o tema.
Isac Menezes.
Um abraço!
isacgalvao(Arr)ymail(ponto)com
Sei que meu avô,Manoel ou Manuel Domingues,portugês e emigrante no Brasil,onde teve uma loja de tecidos e mais tarde se tornou alfaiate,pertenceu ao Clube do Cupim,por prova de documentos que possuo e histórias que meu pai contava. ALGUÉM O CONHECEU?.Procuro reconstruir seu percurso de vida nomeadamente no Brasil,para onde emigrou com desasseis anos,de barco.
Obrigado.Fernando Domingues
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